sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Caso Maísa

Os textos que se seguem fazem referência ao “Caso Maísa”, a menina-prodígio, criação de Silvio Santos para alavancar a audiência de seu programa de domingo e submetida a humilhações, estampadas na Internet.
Num país em que se fala tanto da exploração infantil, em que políticos fazem “carreira” às custas da violência contra criança (entenda-se CPI da Pedofilia), em que marginais associados ao PCC exploram meninos homossexuais pobres, trazendo-os do Norte e Nordeste para São Paulo ainda na primeira infância para “servi-los” no mercado do sexo... Como acreditar em mudança de postura da sociedade, que cultiva o ódio mortal ao casal Nardoni, pede justiça com as próprias mãos, mas mantém-se insensível a todas as formas perversas de exploração infantil e ainda delicia-se com o “Choro de Maísa”?
Leia a frase em negrito para redigir seu texto:

Não dá para levar a sério a campanha da mídia contra o abuso sexual infantil num país em que o abuso psicológico é visto como normal, incentivado pela própria mídia com requintes de sadismo.

Texto 1:

A menina-prodígio e a caixa registradora

Por Washington Araújo em 26/5/2009
(...)

Não é de hoje que a busca por audiência televisiva faz uso de crianças da mais tenra idade. Nos anos 1970 existia programa na finada TV Tupi comandado pelo Lúcio Mauro, Essa gente inocente. Era tudo ensaiadinho, nada saía do roteiro e se saía tinha como consertar antes de ir ao ar. Foi de lá que surgiu o menino-prodígio conhecido como Ferrugem. Detalhe: Ferrugem padecia de uma enfermidade que lhe impedia ou retardava o crescimento.
Nos anos 1980 tivemos Xuxa com programas em que era endeusada e onde ser chamada Rainha dos Baixinhos era o de menos. Muitas eram as cenas vistas ao vivo pelas lentes da Globo em que a apresentadora empurrava a cabeça da criança contra o microfone ou simplesmente chamava a criança de burra.
Maísa se veste como Shirley Temple, moda comum na primeira metade do século 20. A original Temple, além de falar e contar piadas, cantava e sapateava. Encantava a classe média e pobre e encantava mais ainda as classes dirigentes dos Estados Unidos. Eram os anos da Grande Depressão. É provável que dali tenha nascido o termo "menina-prodígio".
Já naquele tempo não era nada fácil para a artista-aprendiz-de-adulto. Temple iniciou aula de dança aos 3 anos de idade e foi contratada para participar de Baby Burlesks, uma série de curtas que parodiavam estrelas e astros adultos, mais notadamente Marlene Dietrich. Foi estrela da Fox e da Paramount. Seus cachinhos e covinhas, além do talento para o palco e a idade, renderam-lhe um Oscar aos 6 anos.
Estudiosos do tema são unânimes ao afirmar que Shirley Temple foi a salvadora da Fox e do público na época da Depressão. Filmes com sua participação eram garantia de bilheteria. Já adulta, após aposentar-se em 1949, aos 21 anos, foi embaixadora de Washington em Gana e na Tchecoslováquia.
Duas frases da pequena Shirley Temple mostram à medida o que significou ter uma infância roubada: "E se quando eu crescer não for tão bonita quanto hoje?"; e a não menos emblemática "Deixei de acreditar em Papai Noel quando tinhas 6 anos. Minha mãe me levou em uma loja e ele pediu meu autógrafo".
Lição de profissionalismo
Desde setembro de 2008, com a quebra do Lehmann Brothers nos EUA, o que não faltam são analistas para dizer que vivemos um período de caos econômico muito similar aos vivido nos anos 1930 e conhecido como a "Grande Depressão". Sintomático que o Brasil passe a conviver com sua Maísa Silva assim como o Grande Irmão suportou as agruras daquele tempo com sua Shirley Temple.
Não há como negar o forte apelo de uma criança contracenando com o dono da empresa e fazendo coisas hilárias, como tentar arrancar sua possível peruca ou chamar a atenção para as muitas rugas no rosto do chefe.
Como também não há como negar que na defesa de crianças e de adolescentes no Estatuto da Criança e do Adolescente parece ser mais obra literária do que um conjunto de normas para proteger a dignidade de nossas crianças e seu direito à infância.
O que não podemos esquecer é a promessa de Maísa de que irá gravar dois programas em uma só semana. Mais responsável, impossível.

Texto 2:
Abuso infantil psicológico
Por Cláudia Rodrigues em 26/5/2009

No domingo, 17 de maio, a menina Maísa, apresentadora do SBT, foi chamada pelo apresentador Silvio Santos ao palco para sofrer humilhações. Segundo o apresentador, uma menina de seis anos, ao chorar, está se comportando como se tivesse dois meses de idade e fosse um bebezinho. Desolada, a garotinha pede desculpas por ter chorado na semana anterior e justifica que está magoada. Ele a chama de medrosa, ela se desespera e sai correndo, acaba batendo com a cabeça numa câmera e Silvio Santos então incita a platéia em coro a gritar: "Medrosa! Medrosa!"
A garotinha volta, diz que a cabeça está doendo, tenta explicar-se novamente, revela que gosta muito do patrão. Continua a humilhação, ela chama pela mãe, que não aparece, não acode, ela tenta sair do palco, retorna mais de uma vez e continua sendo humilhada. Antes de Maísa sair definitivamente de cena, Silvio Santos faz uma última ameaça: "Quando você casar, nenhum marido vai agüentar você".
O caso foi levado ao Ministério da Justiça e ao Ministério Público Federal por duas fontes diferentes. No MPF, um advogado formalizou a denúncia contra o SBT. No MJ, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente encaminhou relatório sobre o caso.
Não dá para levar a sério a campanha da mídia contra o abuso sexual infantil num país em que o abuso psicológico é visto como normal, incentivado pela mesma mídia com requintes de sadismo coletivo.
Sadismo e falta de limites
Ficou claro que a menina, apesar de toda a dor e da humilhação por não ter direito, segundo o patrão, a chorar aos seis anos de idade, temeu perder o emprego e voltou várias vezes, sempre tentando se justificar e dizendo que adorava o patrão. Sádico, ficou óbvio que Silvio Santos é. Se fosse pedófilo, já teria o terreno todo pronto para cometer mais um crime porque o de submeter a pequena a constrangimento e humilhação ele cometeu.
Os pais da menina, onde estão nisso? Será que no contrato consta como direito do patrão abusar psicologicamente da menor em público?
Que sirva como exemplo para que as leis sejam respeitadas e, mais que isso, possamos retomar o debate que começou no ano passado com o caso Isabella Nardoni, sobre causas e conseqüências dos abusos de adultos sobre a frágil personalidade infantil. O debate morreu na praia, no ódio da platéia por aqueles adultos em questão, mas a corrida a favor dos direitos da criança a um tratamento digno e respeitoso evaporou em notas jurídicas sobre o caso.
Não parece boa a comparação? Parece exagero? Não é. Atrás do abuso sexual infantil, atrás das "palmadas inocentes", dos crimes, do aumento de crianças deprimidas, do discurso vazio sobre limites infantis, está o sadismo e a total falta de limites de uma sociedade adulta doente, que vê a criança como brinquedo, objeto, sem o menor senso de humanidade.

Texto 3:
Quando a brincadeira perde a graça
Por Xenya Bucchioni em 26/5/2009


A Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Osasco revogou a licença que permitia a participação da pequena Maísa Silva, com recém-completos sete anos, no quadro "Pergunte pra Maísa", do Programa Silvio Santos. Há dois domingos consecutivos, Maísa gritou e chorou ao vivo durante o quadro do programa. No primeiro domingo, enquanto Silvio Santos driblava o choro da menina como se nada estivesse acontecendo, a platéia apenas repetia em coro o que o amestrador mandava.
Assim, em uníssono, gritavam "Medrosa! Medrosa!", devido à reação da menina ao ver um garotinho de cara pintada presente no palco. E riam, mas como riam. Um riso desesperado, descontrolado, de uma realidade desbotada pela piada maldosa e barata encenada por Silvio Santos e legitimada pela platéia. Não bastasse o ocorrido nesse dia, no domingo seguinte o apresentador classificou como vexame a atitude de Maísa e atribuiu seu "mau" comportamento a uma criancinha de um mês de idade. Ora, mesmo que não tenha um mês de idade, Maísa, ainda assim, é uma criança. E de apenas sete anos. Resultado: a menina sai chorando, bate a cabeça em uma das câmeras do programa, grita pela mãe e é, ainda, mandada de volta ao palco por duas vezes com o incentivo da própria mãe.
Fantasia e realidade
Não vou me estender sobre o comportamento dos pais da garota, sobretudo da mãe, que estava presente nas duas ocasiões. Tampouco sobre a demora da Justiça brasileira em reagir às constantes – pois não são de agora – explorações a que a menina estava exposta. Isso porque Maísa não tem idade suficiente para saber o que toda essa exposição significa, nem ao menos, as conseqüências dos diálogos, aparentemente engraçadinhos e inocentes, que travava ao vivo com o ícone midiático Silvio Santos.
O que me interessa nesse fato é tentar desvendar e compreender em que medida a comunicação, entendida enquanto um processo informacional, se constitui em ambiente fértil para o desenvolvimento e consolidação da chamada midiatização. Por midiatização, entende-se a articulação das tradicionais instituições e das relações humanas com a mídia, em velocidade ascendente devido às novas tecnologias de comunicação, pautada na valorização da forma em detrimento ao conteúdo. As múltiplas formas de visibilidade que temos hoje, com a ampliação das tecnologias de comunicação, como YouTube, Orkut, Twitter ou Facebook, permitem que o próprio indivíduo se torne realidade midiática. Tais ferramentas operam no sentido de valorizar a performance imagética: o que importa é aparecer, pois a imagem pública e a aparência são os elementos que atribuem valor ao indivíduo. A turma do CQC evidenciou bem a questão, em tom de humor, ao chamar Maísa de menina-robô, isto é, alguém com funcionamento programado e artificial.
Maísa é parte de uma geração que vem se formando de maneira muito familiarizada com o excesso de visibilidade. Hoje, vida privada e pública misturam-se sem grandes constrangimentos, o presente liga-se ao novo e à novidade, como se tudo que não é "aqui e agora" perdesse a importância. No jogo complexo do tornar-se visível, travestido de novas formas de comunicação, ganham as indústrias do entretenimento e transforma-se a relação do indivíduo com referências concretas, ou seja, com o conceito de realidade propriamente dito. Diante desse quadro que se desenha, nos resta saber como impor limites no momento em que a brincadeira perde a graça.

Texto 4:
Alice na periferia do capitalismo
Por Carlos Azevedo em 26/5/2009

"Quem quer dinheirooooo?! Quem quer dinheirooooo?!"

O repetido grito de Sílvio Santos ecoa infinitamente no tedioso programa dominical. Frenéticas, como num esdrúxulo harém midiático, as mulheres se agitam, tentando chamar a atenção. Querem ser escolhidas para que o "comunicador" estoure ovos de galinha nas suas cabeças. Tudo por dinheiro.
O filme vencedor do Oscar Quem quer ser milionário? parece caminhar no mesmo terreno em que o veterano brasileiro já trabalha há bastante tempo. Como numa espécie de show do milhão, vence quem responder corretamente todas as perguntas do todo-poderoso apresentador.
Desses dois universos midiáticos bem semelhantes, Índia e Brasil, pescamos algumas notícias recentes, veiculadas em jornais. Destacamos duas meninas, uma brasileira e outra indiana, duas Alices perdidas na periferia do capitalismo.
A primeira, a pequena atriz Rubina Ali, de nove anos, que interpretou a personagem Latika quando criança no filme Quem quer ser milionário? e que recentemente, segundo o site britânico de notícias News of the World, foi posta à venda pelo pai por 200 mil libras (R$ 647 mil). "Essa é uma criança especial agora. Ela não é uma criança qualquer, é uma criança vencedora do Oscar", justifica o pai, Rafiq, morador de uma favela de Mumbai.
Infância rima com infâmia
A segunda é a pequena e irreverente Maísa Alves, apresentadora do Sábado Animado, que após mexer no cabelo do apresentador e dono do SBT Sílvio Santos comenta sem a menor cerimônia: "É peruca! Ele usa peruca!" Enquanto isso, no intervalo, nos comerciais, a pequena atriz vende sandálias infantis, brinquedos e outros produtos associados à sua imagem. Com um contrato de fazer inveja aos brasileiros que ganham um salário mínimo, Maísa parece dizer o que quer no ar, ao conversar com o patrão Sílvio Santos. "Por que você não namora a Hebe, Sílvio?"
Separadas, miséria e esplendor, essas duas pequenas Alices não vivem em países maravilhosos, habitam a periferia do capitalismo em crise. Perderam o assombro e a ingenuidade da Alice original de Lewis Carroll (1832-1898), que ao seguir o Coelho Branco passa a vivenciar um mundo mágico no qual animais falam e outras coisas estranhas acontecem. A caminho das Índias, os dois contraditórios países se unem para além da óbvia tela da novela das oito. As duas meninas midiáticas são mercadorias vivas sem infância. No "maravilhoso" e midiático mundo da ilusão, a palavra infância rima perfeitamente com infâmia.

*Todos os textos foram selecionados no site Observatório da Imprensa


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